Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que jogou hoje
Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje.
Este trabalho de colagem opera como um encruzilhamento visual, ativando o provérbio iorubá “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que jogou hoje” não apenas como referência, mas como estrutura poética e filosófica da própria imagem. Nessa composição, o tempo deixa de ser linha reta e passa a ser dobra, espiral, curva — um território onde passado, presente e futuro coexistem, trocam de lugar e produzem efeitos uns sobre os outros. Como nos lembra Exu, senhor da comunicação e da imprevisibilidade, aquilo que se enuncia nunca é estático: a linguagem é também movimento, travessia, corpo e estratégia.
As colagens reunidas nesta imagem — com figuras que tensionam a lógica eurocentrada do humano, do real e da memória — evocam o pensamento de Sylvia Wynter, que propõe a urgência de desestabilizar a noção ocidental de “homem” como medida universal da existência. Ao reunir elementos de temporalidades distintas e corpos que não se encaixam nas formas conhecidas, o trabalho convoca justamente esse outro campo de humanidade, onde a fabulação e a ancestralidade são ferramentas de existência e reexistência.
A cena da esquerda, em especial, traz uma figura alada com corpo-memória de matriz africana conduzindo um pássaro dourado preso a um cavalo vermelho, cujo corpo parece bordado com formas florais. Tudo flutua, como se a gravidade fosse outro signo a ser reinventado. Já na cena da direita, a criatura alada e acocorada — híbrida, terrosa e ancestral — se debruça sobre o tempo como quem o molda. Esse gesto silencioso sugere o que Denise Ferreira da Silva chama de “imagem como pensamento”: um modo de produzir mundo sem precisar da linguagem ocidental da razão, da lógica cartesiana ou da separação entre sujeito e objeto.
Assim, esta obra não ilustra o provérbio, mas o encarna. A pedra lançada por Exu atravessa a superfície da imagem e nos atinge no agora, desorganizando o que achávamos saber sobre tempo, causalidade e história. A colagem, como prática política e estética, torna-se aqui um lugar de insubordinação semiótica: ela reorganiza os signos, refaz os vínculos entre matéria e espírito, e nos convida a imaginar o impossível como possibilidade concreta. Porque, como nos ensina Exu, o tempo não caminha — ele dança.
Silvana Mendes, 2025.
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